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sexta-feira, fevereiro 17, 2006 

Sobre Nada


Este é o autodenominado espaço para sinapses perdidas. Será aqui que serão depositadas as palavras que tenho sobre quotidianidades: cousas do dia a dia no rigoroso sentido da palavra. Eu não sou dado a extremismos e, ao que parece, também o dicionário o não é, já que acrescenta à definição de "quotidiano" o sinónimo "habitual". E é a partir de aqui que o assunto começa a incandescer, quase no ponto de ser malhado, porque de quotidiano a habitual o caminho é longo.

O quotidiano é a frequência diária, é o dia-a-dia de todos os dias. Não há dúvidas aqui, porque é uma definição absoluta e concreta. Se algo acontecer recorrentemente e de forma consistente durante todos os dias, por toda a nossa eternidade, será verdadeiramente parte do nosso Quotidiano. Já o “habitual” não tem fronteiras, não tem limites nem superior, nem muito menos inferior.

Vejamos: a partir de que frequência se pode considerar que um evento é habitual? Sê-lo-á se ocorrer uma vez a cada dois dias? Uma por semana? Por mês? Mais? Menos? Muito? Pouco? Depende, dir-se-á por ventura. Mas depende de quê? Do tipo de evento, da sua envolvente espaço-temporal, da psico-socio-fisiologia individual do praticante? De uma combinação de todos esses mais os outros que faltam? Não se sabe bem, mas ainda assim depende. A afirmação mantém-se: não há um limite inferior a partir do qual se possa dizer que não é habitual. Por aproximação poder-se-á dizer que é mais habitual ou menos habitual, mas isso são termos relativos onde há uma comparação entre uma condição e outra, porque em termos absolutos e concretos não há uma quantificação.

Por outro lado, será minimamente intuitivo declarar que limite superior tem sim senhor, e é imediatamente antes do quotidiano que se situa. Ou seja, um evento será habitual num excesso de frequência limitado superiormente pela repetição diária, momento até ao qual será considerado quotidiano. Mas será? Sendo assim, onde se situa essa tal linha divisória que separa um do outro? Matematicamente, se num ano houver um dia em que não se verifique o dito evento quotidiano, há uma diminuição na terceira casa decimal no valor da frequência com que ocorre, passando de 1 para aproximadamente 0,997. Não parece grave. Mas então será correcto dizer-se que a actividade é Quotidiana? Ou apenas habitual? Pensando em termos de consequências, a diferença à partida parece mínima, procurando refúgio para não dizer nula. Se não comer nem beber nem dormir durante um dia em trezentos e sessenta e cinco, não se morro disso (não é verdadeiramente assim, mas é-o numa razoável aproximação). Em suma, em termos de limite superior, sabe-se que se chegar a ser todos os dias passa a quotidiano, mas então até quando será considerado meramente habitual? 99,9% 99,99% 99.99999%? Mais uma vez a resposta depende. Entre habitual e quotidiano, como na corrida de Aquiles contra a tartaruga, há uma infinita quantidade de meias distâncias, que por força da própria definição de infinito, nunca chegará a ser ultrapassada e o habitual nunca será realmente Quotidiano.

Até agora, nada de mais. A curiosidade está em concluir que em nós e na nossa vida diária, nenhum gesto, nenhum acto, nenhuma ocorrência é verdadeiramente quotidiana nem habitual, se bem que por razões diferentes. Quotidiano é algo Absoluto, e o Absoluto é um ramo da Theoria que não se verifica na Praxis. Nunca. O Habitual, agora com inicial capitalizada porque o merece, não tem propriamente limites, e o que não tem limites não pode ser definido, e o indefinido sabemo-lo bem, é o mesmo que dizer que é Transcendente. Mas se não os distingue a categoria a que pertencem, distingue-os um outro aspecto: ainda que indefinidas, todos os dias se realizam actividades habituais, sem que nenhuma se converta numa Quotidianidade. A conclusão é no mínimo intrigante: O Quotidiano é Absoluto e como tal, impraticável, enquanto que o habitual é simplesmente (se é que posso dizer assim) Transcendente, mas ao mesmo tempo realizável e verificável. Conduzindo a uma outra noção: todas essas habitualidades, todas essas ocorrências habituais acontecem dia após dia, ou seja, os dias são recheados de acontecimentos habituais, tornando-se assim quotidianidades. Então o próprio Quotidiano é feito de habitualidades, portanto de paradoxos, de indefinições, de cousas que repetimos mas que nunca se repetem, e esses são os objectos do nosso verdadeiro dia a dia, que só por serem banais, não deixam de ser misteriosamente intrigantes.

A ilação daqui se poderá retirar de toda esta entropia gramatical, não se resume à discussão de definições de palavras, mas é muito mais lata que isso. Universal, diria. Em verdade, e para além do Absoluto, não há definições ou limites para nada. Absoluto é um qualquer algarismo, mas um único apenas, e mesmo assim não passa de uma abstracção teórica. Traçar uma linha com o comprimento de 10 metros, não é mais que fazer-se uma aproximação que depende numa aproximação da exactidão pretendida, e portanto nunca será absolutamente 10 metros, mas 10,000001 ou 9,9999999, tanto faz para quem quiser apenas fazer um muro, mas diga-se o mesmo a um físico de partículas que tenta medir a velocidade da luz em diferentes meios de propagação e vê-lo-ão a estremecer de indignação. O mesmo acontece com qualquer outro aspecto físico como cor, massa, posição ou tempo. Os instrumentos, como auxiliares de medida desses parâmetros, não são infinitamente exactos e nem mesmo a nossa assimilação e interpretação, e por consequência conclusão e descrição deles o seria – ambos são limitados porque são uma extensão natural da nossa própria interpretação do mundo que depende em última análise de cada um que o faça. Passar de aspectos concretos como esses, para os abstractos como sensações, emoções, impressões, sentimentos, memória, não será propriamente aumentar a complexidade, porque no fundo tudo isto se pode resumir (ou não) a fenómenos físicos e/ou químicos que sofrem dos mesmos males, mas apenas uma mudança de área de estudo. A diferença é que essas inexactidões são naturalmente melhor aceites pela sociedade, por força da educação repetitiva que vamos tendo a esse nível. Mas isso nem são bem diferenças, são enraízamentos que nem assim se fazem notar na quotidianidade dos relacionamentos interpessoais. Se assim fosse, mesmo as conversas mais banais seriam realizadas a um outro nível completamente distinto.

Nunca a descrição de uma realidade reproduzirá univocamente a Realidade a que propõe referir-se. O assimilar dessa restrição é o fundamento endógeno da Arte, da Literatura, da Filosofia, da Religião (até certo ponto), e ao mesmo tempo, o Santo Graal e a coroa de espinhos da Ciência e da Matemática. O nosso juízo sobre a realidade não passa nem nunca passará de uma aproximação, exactamente por ser individualmente nosso e não poder ser assim sem ser o fruto de uma observação individual sobre um objecto. Mesmo a Física já concluiu que o simples acto de observar um evento altera (ou no mínimo pode alterar) esse mesmo evento. O mero acto de olhar pode mudar o objecto observado. Tome-se o exemplo da descrição de um acidente: fora as mentiras e as adendas posteriores que advém da humana condição, cada relato parecerá corresponder a um evento distinto e num tribunal, assumindo uma situação ainda mais idealista onde ninguém mente consciente ou inconscientemente, haverá sempre algo por esclarecer. Juntem-se pedras encontradas na praia e tente-se separá-las por grupos com características comuns, por exemplo a cor: as brancas para um lado, as pretas para outro, e um montinho diferente por cada cor diferente. Durante essa tarefa, já se notarão diferenças óbvias entre as pedras no mesmo montinho: umas terão manchas de outras cores, umas serão mais estriadas, outras pintalgadas, umas furadas, outras lisas, umas de bordas arredondadas, outras angulosas, umas mais pesadas, outras ásperas... Sem se aceitarem algumas aproximações dizendo que não sendo iguais, são ao menos parecidas, é inevitável terminar com uma única pedra por cada monte. Mas mais importante é aperceber-se que essa divisão não faz sentido. Ou qualquer outro tipo de divisão de qualquer outro tipo de objecto por qualquer outro tipo de característica. Todos os actos individuais têm uma justificação individual. O demónio está nos detalhes. A Vida é a procura de um equilíbrio, de uma aproximação que nos baste e que sirva para uma estabilidade individual, ainda que nunca se consiga. Ser-se extremista a qualquer nível é negar metade de si mesmo. Liberdade é aceitar a clausura como se aceita a autonomia. Nada disso mudará o que se É verdadeiramente.

Esta discussão é ao mesmo tempo consequente e não. A interpretação é igual. Não há conclusões absolutas. Não há fim.

Sobre mim

  • Nome: Daniel Marinha
  • De: L'Isle sur la Sorgue, Provence-Alpes-Côte d'Azur, France
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